Não vamos falar das flores…
Um dos temas que mais surgem em constelações é aborto. A dor de quem faz. A dor do abortado. O emaranhamento dos descendentes.
Não é um tema religioso pois religião é crença, gravidez é fato. É um tema médico, psicológico e jurídico. É um tema das mulheres.
Um aborto não é um tema familiar. É antes um tema da mulher. Um aborto nem é um tema do casal. É antes um tema da mulher. E a mulher resolve isso com o bebê. Sim, seu bebê. É o corpo, a vida, a decisão dela, bem como todas as consequências que ela assumirá. E de mais ninguém, dependendo da maturidade com que assumir isso. O homem pode até dar sua opinião e se responsabilizar pelo fato de ter engravidado uma mulher, mas a decisão de continuar ou interromper uma gestação, no final, é apenas da mulher. As consequências desta decisão recairão sobre ela sua vida toda. E, se ela em nenhum momento tiver maturidade e grandeza para olhar para isso, recairá sobre seus filhos e descendentes porque é um dano e danos são compensados. Se não pela pessoa que o fez, pelos traumas transgeracionais decorrentes de uma exclusão. Obviamente é uma decisão de vida por ela e morte pelo princípio de vida que ela abriga seu ventre. Ela está decidindo pelo que veio antes: ela, e não o bebê. Este está sendo excluído do sistema. E nem sempre ela foi inconsequente de engravidar. Muitas vezes, isso aconteceu por violência. Mas quem decide que a gestação não siga adiante é ela e só cabe a ela, com ajuda da lei ou sem.
Já atendi mulheres que chegaram para a constelação com este dilema. Faço ou não um aborto. Vou descrever como trabalho nestes casos. Tenho certeza de que será útil para alguma mulher, pois é possível fazer esta vivência sozinha.
Colocar -se no seu lugar de mãe e experimentar dizer ao bebê na barriga: “Querido filho ou filha. Sinto muito. Não tenho maturidade para continuar sendo sua mãe, nem assumir esta gestação. Eu escolho a mim e não a você. Sou grata pelo tempo que passamos juntos. Você sempre terá um lugar no meu coração. Não me orgulho de como engravidei e de minha escolha sobre o que farei agora. Sei que assumirei todas as consequências desta decisão. A vida me trará oportunidades de compensar este dano porque sei que estou ferindo a Vida. Espero que você, seja em que forma for, vá para um bom lugar. Este sacrifício que te causo não será em vão. Aprenderei a não deixar que isso ocorra novamente. Crescerei a partir desta dor e deste dano. Sua morte dará lugar a outros e de alguma forma isso é um mérito seu. O dano de minha decisão é totalmente meu.
Olhar para seus possíveis futuros descendentes e dizer: Eu fiz. Eu assumo. Este foi o primeiro filho que tive (caso seja o primeiro) e ele tem um lugar no meu coração. Vocês chegarão depois dele. E talvez, porque ele não ficou.
Então, sentir o que ocorre no seu corpo. Dá conta de assumir tal responsabilidade? Isso te expande ou diminui. Te dá força ou cai no choro?
Caso não te faça sentir coerente com tal decisão, experimentar dizer: Querido filho ou filha, não faço a menor ideia de como será essa gestação e nossa relação futura. Não estou pronta nem para cuidar de você, nem para interromper esta gestação. Sinto muito. Nos entrego nas mãos de Algo maior. Confio que recursos virão e me responsabilizo por cuidar de nós dois.
Novamente, observar se ao dizer esta frase com todo amor, respeito e dignidade, isso te engrandece ou enfraquece.
Nesta direção, será possível decidir entre uma ou outra escolha. Apenas a mulher e seu corpo.
(Num atendimento que fiz, a mulher decidiu pelo aborto. Ela falou com tanto amor, mas tanto amor e de alguma forma o aborto ocorreu espontâneo na mesma noite. Detalhe: ela já tinha filhos adultos, mais de 45 anos e um parceiro recente e agressor que tinha acabado de sair da vida dela)
A mulher também deve experimentar dizer na sua imaginação para o pai do bebê: Não importa o que aconteceu entre nós. O bebê, enquanto na minha barriga, é minha responsabilidade. Ninguém pode me obrigar a ser uma mãe melhor do que consigo ser agora. E se eu decidir ser mãe só por estes meses, fui a mãe possível. Sinto muito se causo a morte de um filho seu. Compreendo se não confiar mais em mim para ser a mãe de seus filhos e até se afaste de mim, se discordar de minha decisão. Assumo esta consequência também. A responsabilidade por ter engravidado divido com você, mas de optar pela interrupção da gravidez é minha.
(Nenhum homem ou lei feita por homem pode se impor sobre a decisão de uma mulher. O corpo é dela, o risco da gestação e parto são dela, portanto ela vem antes. Sua decisão é soberana)
Caso esta mãe resolva dar o bebê em adoção, pode dizer: Querido filho (a), sinto muito. Só tive maturidade para ser sua mãe pelos meses da gestação. Entrego você a adoção e a um novo destino que se abre a sua frente. Não fiz a escolha de impedir que nascesse. Mas assumo o dano que te causei com esta separação. Como faço por amor a mim e a você e a alguém que ficará feliz com sua chegada, sei que já fiz um pequeno bem diante do mal que será esta separação à você. Confio e te entrego ao seu destino. Sei que perco o direito de procurá-lo, pois estou abrindo mão de você. Mas, por amor te entrego a outra mulher que será sua cuidadora. No coração, serei sempre sua mãe. A vida te conduzirá a outra cuidadora mais apta do que eu posso ser agora e que você também chamará de mãe. Abençoo que seja feliz junto à outra pessoa que faça a função materna junto a você. Sou sua mãe para sempre.
Caso os avós queiram criar este bebê que uma filha ou nora resolva doar, talvez tenham que recorrer à justiça. E, caso isso seja possível, seguem sendo os avós e cuidadores desta criança. A mãe perde o direito à ele, da mesma forma que o desse a estranhos. E seria muito estranho o convívio entre eles a partir de então, visto que estes avós escolheram o neto (a). Neste caso, esta mãe já começa a compensar porque provavelmente se excluirá.
Com relação a estes avós que tomassem tal decisão, poderiam experimentar dizer: Sinto muito filha ou nora pela sua decisão. Não podemos julgá-la. Ninguém pode. Compreendemos se não puder mais ficar próxima a nós. Assumimos esta dor e consequência de nossa escolha. Optamos por deixar esta criança viver com seus laços consanguíneos ao preço que te custou e nos custará. Escolhemos adotá-la.
Esses avós darão conta de entrar nesta briga para ficar com um neto que a filha ou nora não quer? Caso não, devem respeitar a decisão da mãe da criança e abençoar que esta criança siga livre de suas culpas e seja feliz para outros que a adotem.
Vejam a dificuldade de falar estas frases e fazer tais escolhas. Só há sofrimento. Os avós precisariam se afastar dado que se esta filha ou nora tiver outro filho, a situação ficaria mais estranha ainda entre estes irmãos. Um ficou com a avó, outro com a mãe. A dor de muitos adotados é justamente porque só ele foi dado. Imagine ser criado como irmão adotado de sua mãe? Não dá para avós assumirem este bebê sem que a mãe sofra as consequências, porque abre precedentes para que ela continue gerando bebês, por entender que seus pais assumirão as consequências de seus atos. É claro que podem combinar de assumir pelos anos iniciais, mas há que se pensar que também isso pode causar danos psicológicos à criança, se a mãe não quiser assumir esta criança em que tempo for. Precisaria um alto grau de maturidade para conviver em tal situação.
Não se toma um decisão pelo aborto ou entrega do bebê sem um custo muito alto. E como as consequências recaem somente sobre a mãe, exatamente por isso, a decisão é só dela. E a forma que ela o fizer, se for adulta, pode ser tanto menos pior para todos. Mas há dor sempre. Por isso, ninguém está no lugar desta mãe. Não se compara duas gestações, muito menos duas mulheres. As contingências de uma gestação são únicas. Ninguém pode julgar alguém, pois não viveu o mesmo.
Todas situações são dificílimas, mas esta é só uma ideia bem inicial de como sentir sistemicamente os efeitos desta tomada de decisão. Há muito mais a ser visto. E atire a primeira pedra quem nunca fez um aborto ou teve uma familiar que fez. Todo ser humano está bem próximo de uma mulher que optou pelo aborto. Ela precisa de amor antes de sua escolha, não julgamento. Ela precisa de respeito após qualquer decisão, não julgamento. Seja lá o que uma mulher escolher, isso é entre ela e sua consciência. Mesmo aquelas que fazem abortos repetidamente, como se não tivessem sentido a dor desta escolha, não podem ser julgadas, pois devem ter uma série de dificuldades que sequer imaginamos.
Todos tivemos alguma ancestral que abortou. Julgar uma mulher que aborta é cuspir em sua mãe, avó, bisavós e assim por diante ou algumas delas.
Num mundo ideal, só mulheres maduras psiquicamente engravidariam. Não estamos nele.
(Silvana Garcia)